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Autismo clássico – Autismo leve: sofrimento se mede?

denise-aragão

Quando o despertador tocou, pontualmente às seis, Sandra travou-o, mas não se levantou de imediato. Seu corpo todo doía, como se tivesse levado uma surra. Esta era uma sensação que ela conhecia bem, pois frequentemente se sentia desta forma. O médico lhe disse que era uma condição física, de fundo emocional e psicológico. Cansaço, stress e preocupação constante formavam uma combinação explosiva, cujo resultado ela sentia na pele. Havia se deitado por volta das três da manhã quando Lincoln, seu filho de 15 anos, autista clássico, finalmente adormeceu. As noites eram longas e as madrugadas intensas, cansativas. A privação do sono estava deixando-a sem ânimo para mais nada. Mas nem sempre havia sido assim. Lincoln sempre tivera um sono regular e satisfatório; a chegada da adolescência, entretanto, trouxera modificações em vários aspectos e o sono havia sido um dos mais afetados. Apesar de demorar muito a iniciar o sono, ele despertava muito cedo: por volta das 8 da manhã. Havia noites em que ele dormia, em média, apenas 4 horas. Além disso, ele precisava de auxílio e supervisão nas atividades da vida diária. A ausência da fala e a resistência que ele apresentava em utilizar a comunicação alternativa, dificultavam muito todo o quadro. Na última semana, Lincoln chorou um dia inteiro sem que Sandra soubesse o que motivava o choro. Ele andava de um lado para o outro, agitando as mãos e tapando os ouvidos, freneticamente. Instintivamente, Sandra lhe deu um medicamento para dor. Horas mais tarde, com uma febre de quase 40 graus, ele adormeceu. Com a ajuda do marido, ela levou-o a um hospital, onde ficou constatado que havia rompido o tímpano em razão de um quadro de otite média aguda. A dor causada pelo rompimento do tímpano havia sido tão desesperadora que o levou a chorar por todo o dia, causando-lhe angústia e sofrimento. Situações como esta preocupavam-na de forma demasiada. Seu coração ficava dilacerado… Sonhava com o dia em que ele aprenderia a se comunicar, de alguma forma. Temia, e muito, pelo seu futuro.

O alarme do celular tocou às seis da manhã. Rapidamente, Olga travou-o, pois, na verdade, não havia sido despertada por ele. Fato é que ela não havia “pregado” os olhos a noite inteira. Em um impulso instintivo foi até o quarto de seu filho mais velho. Maxwell, aos 15 anos, seria um menino como todos os outros, se não fosse por um pequeno detalhe: tinha sido diagnosticado com autismo leve aos 7 anos de idade. Quem o visse dormindo tão profunda e tranquilamente, não imaginaria que a madrugada havia sido repleta de sofrimento e dor. Até às três da manhã ele havia chorado compulsivamente. Os esforços de Olga haviam sido inúteis para consolá-lo. O menino não conseguia esquecer que havia sido rejeitado pelos colegas de classe. E não apenas rejeitado, como também cruelmente ridicularizado. Por mais que se esforçasse, Olga não conseguia esquecer o sofrimento que viu no rosto do filho quando ele lhe afirmou, entre lágrimas e soluços, que não gostava de ser diferente. Maxwell, assim como muitas pessoas com autismo leve, tinha plena consciência de sua condição. E sofria por isso. Compreender-se diferente dos demais, lutar diariamente para ser aceito e não conseguir em alguns momentos causavam frustração e amargura em seu menino. Abraçado à sua mãe, ele, praticamente, suplicava por amigos. O estopim causador da angústia da noite passada havia sido, de longe, o mais cruel de todos que ele já havia enfrentado. Há uma semana, seus colegas haviam convidado Maxwell para ir ao cinema. Ele exultou de alegria! Na data combinada, foi até o endereço marcado, mas não encontrou ninguém. Ao invés disso, recebeu uma mensagem pelo celular dizendo que ele era estranho, e que mais uma vez havia acreditado que a “turma” gostava dele quando, na verdade, todos estavam em outro cinema, do outro lado da cidade. Juntamente com a mensagem, eles enviaram uma “selfie” com a hashtag “Maxwell esquisito”. Assistir ao sofrimento do filho provocava em Olga feridas profundas na alma. Sonhava com o dia em que ele seria realmente aceito e respeitado pela sociedade. Temia, e muito, pelo seu futuro.

As estórias acima descritas são fictícias, bem como os personagens. Entretanto, sabemos que estórias como estas se repetem diariamente, em todos os cantos do mundo. Sandra e Olga, assim como seus filhos, têm os corações repletos de dor e angústia.

Percebemos que, independente do grau de autismo, as dificuldades são inúmeras e consistem em verdadeiros obstáculos a ser transpostos.  Infelizmente, é muito comum a ideia de que pessoas com autismo leve sofram menos por, supostamente, enfrentar “problemas” menores e menos graves. Isto, contudo, não é verdade.

A grande verdade é que sofrimento e dor não podem ser “medidos”, julgados e, muito menos, comparados. Só é possível mensurar uma dor quando a sentimos dentro do peito rasgando a alma. É do conhecimento de todos nós, pais e familiares de pessoas com autismo, que não podemos, nem devemos, de forma alguma, comparar um autista com outro. Da mesma forma, “medir” dificuldades ou até mesmo “sofrimentos” é injusto e igualmente cruel. Muitas vezes, encontramos situações como esta dentro do chamado ” universo azul” que nós habitamos com nossos filhos.

Mães comparando angústias e dores, “medindo” sofrimentos e infelicidades, numa espécie de “disputa” macabra e preconceituosa. Tal atitude não acrescenta em nada. Apenas e tão somente dissemina ainda mais o preconceito, que tanto lutamos para combater e erradicar. Não devemos julgar ou comparar o que quer seja ou quem quer que seja.

Ao invés disso, devemos procurar consolar, confortar e acolher umas às outras.

Denise Aragão

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