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Em algum lugar do passado

 

Todos nós, em algumas fases de nossas vidas, passamos por momentos em que é necessário revisitar o passado, para poder seguir em frente no presente e construir o futuro. Esta semana tive um destes momentos.

Abrindo armários, vasculhando gavetas, me deparei com pequenas grandes lembranças, momentos de dor e sofrimento que vivi há 7 anos e que deixei guardado, esquecido em um canto.

Debruçando-me no interior das gavetas de minha alma, resolvi iluminar alguns pontos de escuridão que lá se encontravam, jaziam inertes, escondidos no porão do subconsciente, aguardando o exato momento de serem expurgados, expiados.

Em minha caixa de guardados, rascunhado a mão, com letra trêmula e ainda manchado pelas muitas lágrimas derramadas, encontrei um papel, com a primeira definição de Autismo que encontrei na Internet e que escrevi, alternando sentimentos de incredulidade, desespero e dor…”Doença Incapacitante: jamais será capaz de estabelecer relações com o mundo exterior, nem mesmo com sua própria mãe.”

Ah ! Quantas e quantas vezes eu li, reli e tornei a ler aquela frase…
Por quantas vezes eu implorei à Deus que aquilo não fosse verdade? Por pouco não me afoguei no mar de angústia e desespero! Isso só não aconteceu porque fiz da esperança minha grande companheira!  Mesmo quando o sofrimento insistia em bater em minha porta diariamente, eu respondia: “Só por hoje, não quero a sua companhia, pois elejo a esperança meu par constante. É e de mãos dadas com ela que quero trilhar minha jornada.”

Mais à frente, outro guardado. Reluto em abrir o envelope, pois sei exatamente o que está escrito dentro dele…
É uma “carta” que escrevi para o João Pedro, assim que comecei a ter certeza de que ele era autista.
Escrevi porque falava com meu filho e ele parecia não ouvir…
Escrevi porque quando ele me olhava, parecia não me ver…
Escrevi na vã esperança de que, uma vez escritas, quem sabe as palavras não ganhassem vida e de alguma forma chegassem até ele, fazendo-o compreender tudo o quanto eu precisava dizer-lhe.

Hesito e dobro o envelope. Talvez não seja ainda o melhor momento para abri-lo. Afasto-me e inicio uma verdadeira batalha mental entre a covardia e eu.
Vencendo a hesitação inicial, tomo de ímpeto o envelope e sofregamente abro, sem mais pestanejar. Começo a ler, mas as lágrimas que afloram abundantemente me impedem de terminar a leitura. Respiro fundo, recupero o fôlego. Diz a “carta”:
” O que fazer com todo amor que eu tenho aqui dentro, esperando para te dar?
Gostaria de lhe contar uma história à noite para fazê-lo dormir, mas como saber qual é a sua história favorita? Como afugentar seus medos, se eu desconheço quais são eles? Como ajudá-lo a realizar seus sonhos, se não tenho nem mesmo acesso a você? ”

Novamente, um pranto dolorido me sufoca …Entretanto, guardo o envelope e sorrio. Eu já sei sobre meu filho. Conheço-o por fora e por dentro, pois oferto a ele meu amor e recebo em troca! Ele me olha, me vê e sabe que nosso vínculo é para sempre!

A limpeza continua. A cada novo achado, sou tomada por um verdadeiro turbilhão de emoções e me permito vivê-las, sem pressa ou pudor.

Ato final. Chego a uma agenda do ano de 2006, onde encontro um desabafo que escrevi no auge de todo o processo pela busca (infrutífera) do diagnóstico. Eu estava buscando o diagnostico do JP há 9 meses e já havia passado por 7 especialistas.

Na folha já amarelada pelo tempo, escrevi o seguinte:
” Outro dia se aproxima do fim, mas não  carrega com ele o fim da minha dúvida. O João Pedro é ou não autista? Algumas vezes tento me convencer de que não e, por vezes, até consigo. Noutras sinto no peito a certeza cruel, dura e avassaladora que SIM. Esta incerteza me corrói , me consome e está me aniquilando aos poucos. Sinto-me fraca, cansada e impotente. Meus esforços acabam sempre em nada. Gostaria tanto, mas tanto de estar errada …sinto-me tão sozinha …uma solidão profunda como aquela que ele procura.

Cada vez que saímos, seu comportamento reforça a minha desconfiança. Cada vez que estamos em contato com outras crianças, suas diferenças aumentam assustadoramente e seu comportamento se torna incompatível com os dos demais.

Por que eu não consigo apagar de vez esta dúvida? Por que esta sombra vive pairando sobre a minha cabeça? Por que será que no fundo do meu coração eu sei que o João Pedro é diferente? Por que só eu vejo isto? Serei eu a única errada? Como eu gostaria de ser…

Não é que eu não aceite, não é esta a questão. Eu só quero um diagnóstico definitivo, um parecer que confirme ou descarte de vez. Eu só quero uma certeza, seja ela qual for . Seja feita a Sua Vontade meu Deus , em nossas vidas ! Eu só quero poder ajudar a meu filho, ajudar a mim mesma, ajudar a nossa família, me tirar desta situação em que me encontro, este vazio na alma, este cansaço de espírito, esta dor no coração…
Eu clamo desesperadamente a Ti, meu Pai, que me oriente no caminho a seguir, o profissional a procurar… Senhor, eu entendo que as coisas acontecem no Seu tempo, conforme a Sua Vontade e que o Senhor não trabalha na nossa ansiedade, mas ajuda-me! Pois estou tão cansada…em Tuas mãos entrego meu espírito, meu coração e meu problema. Ajuda-me, Senhor Jesus! ”

Dezenove dias depois de ter escrito este texto, consegui uma profissional que diagnosticou meu filho.

Término da arrumação. Sinto-me  leve e livre. Dou adeus aos meus fantasmas. Posso seguir em frente, pois tenho a sensação de, finalmente, ter exorcizado meus demônios. Pelas frestas da janela, deixo entrar o ar e a claridade que são trazidos pelos novos  tempos. Estou mais forte em perceber que vivi e sobrevivi a tudo isso e que hoje tenho boas histórias para contar.

Mas não poderia seguir em frente, não sem antes abrir as portas do meu eu e resgatar a mim mesma, presa aos grilhões do sofrimento e da angústia, naquele ano de 2006.

E na sua vida, existe alguma coisa que ainda te prende ao passado?

 

Denise Aragão

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