Autismo para pais

Distúrbios do sono e o Transtorno do Espectro Autista

Paulo Liberalesso

(Diretor-técnico do CERENA – Centro de Reabilitação Neuropediátrica do Hospital Menino Deus. Médico Neuropediatra. Pós-graduado em Neurofisiologia. Mestre em Neurociências. Doutor em Distúrbios da Comunicação Humana)

 

Até o final do século XIX e o início do século XX, não tínhamos, praticamente, nenhuma noção de como o cérebro humano funcionava durante o sono. Naquela época, os pesquisadores acreditavam que o sangue desviado para o estômago e os intestinos durante o dia (“para metabolizar os alimentos ingeridos”) levaria a uma redução do sangue no cérebro e, consequentemente, ao sono durante a noite. Outros pesquisadores acreditavam, ainda, que durante o passar do dia nosso corpo produziria toxinas que levariam a uma fadiga física e mental que provocariam o sono noturno e, que durante a noite, essas toxinas produzidas seriam eliminadas para que o indivíduo pudesse despertar novamente na manhã seguinte. Evidentemente, essas teorias não fazem absolutamente nenhum sentido à luz do que sabemos hoje a respeito da neurofisiologia do sono.

Foi somente em 1902 que o psiquiatra alemão Hans Berger iniciou seus trabalhos com o registro da atividade elétrica cerebral em cães e pudemos, então, compreender que o cérebro apresenta uma atividade elétrica totalmente distinta quando estamos acordados e quando estamos dormindo. Em 6 de julho de 1924, Berger conseguiu registrar a atividade elétrica no cérebro de um rapaz de 17 anos após seu crânio ser trepanado para a remoção de um tumor cerebral. Nesse momento, dava-se início a compreensão de muitos fenômenos neurobiológicos que ocorrem no cérebro enquanto dormimos. Infelizmente, Berger foi profundamente afetado pelas consequências da Segunda Grande Guerra Mundial e pela expansão do nazismo, vindo a cometer suicídio por enforcamento após três anos de severa depressão e internamento em uma clínica psiquiátrica de Jena. Em 1937, Alfred Loomis, Newton Harvey e Garret Hobart descrevem de forma mais detalhada o funcionamento elétrico do cérebro humano durante as diferentes fases do sono.

Atualmente, nós sabemos que o sono depende de um intrincado e complexo mecanismo, que envolve muitas estruturas encefálicas e muitos neurotransmissores. Sabemos, também, que a privação de sono (dormir pouco ou menos que o necessário) tem efeitos graves sobre o funcionamento cerebral, hormonal e sobre o comportamento humano.

Sabidamente, pessoas com autismo tem risco muito maior para desenvolverem problemas relacionados ao sono, sendo as queixas mais frequentes a “dificuldade para iniciar o sono”, o “sono agitado” e os “despertares noturnos recorrentes”.

Há, também, uma relação direta entre a gravidade do autismo e a severidade do distúrbio de sono, ou seja, quanto mais grave o TEA mais intensos e frequentes são os problemas do sono. Além disso, quando a criança no TEA apresenta outras comorbidades neuropsiquiátricas, como o transtorno do déficit de atenção e hiperatividade, comportamento impulsivo, transtorno de ansiedade, de conduta ou transtorno opositor desafiante, o risco de distúrbios de sono também é maior.

Mas por que exatamente crianças com autismo têm dificuldades relacionadas ao sono?

Nós não sabemos a resposta exata, mas provavelmente essas crianças são incapazes de fazer uma adequada “leitura social” dos estímulos discriminativos que mostrariam ao indivíduo que está chegando a hora de dormir. Embora os ritmos circadianos do corpo e os ciclos claro / escuro sejam, aparentemente, preservados no TEA, se você é incapaz de perceber determinadas características ambientais que sugerem que é chegada a hora de dormir, provavelmente seu cérebro terá muita dificuldade para desencadear os processos naturais que induzem ao sono. Outro aspecto também importante é que muitas crianças no TEA são muito mais sensíveis a estímulos ambientais como os ruídos, odores e estímulos visuais, o que poderia manter o cérebro em um estado permanente de excitabilidade, dificultando o início e a manutenção do sono. Há crianças no TEA que são absurdamente sensíveis ao toque (tato), de modo que mesmo o simples contato com o lençol ou uma coberta podem dificultar o sono.

Certamente, a melatonina está de alguma forma envolvida nos distúrbios de sono das pessoas no TEA. Esse hormônio foi descoberto em 1958 por pesquisadores da Universidade de Yale, liderados pelo dermatologista Aaron Lerner, sendo hoje considerada uma das mais importantes substâncias de produção endógena para o controle dos ciclos de sono e de vigília. A melatonina é produzida em diversas partes do nosso corpo, como na retina, glândulas lacrimais, linfócitos e intestino. Mas, sem nenhuma dúvida, a maior produtora de melatonina é a glândula pineal, localizada no cérebro. A melatonina, além de importante na manutenção do sono noturno, ainda atua reduzindo a temperatura corporal, a frequência cardíaca e a pressão arterial durante a noite.

Em muitos casos de distúrbio de sono em crianças no TEA, nós podemos administrar doses baixas de melatonina oral noturna com excelente eficácia e baixíssimo risco de efeitos colaterais. Um fato muito interessante é que, frequentemente, após iniciarmos a melatonina durante a noite para tratar o sono, as famílias passam a referir uma significativa melhora do comportamento social da criança durante o dia seguinte, o que possivelmente é explicado pela íntima relação de conversão metabólica entre a melatonina e a serotonina.

Um ponto muito importante, também, é lembrarmos que cada pessoa tem uma necessidade particular de sono, ou seja, de horas de sono por dia. Em média, um recém-nascido precisa de 16 a 18 horas de sono por dia; um bebê de 6 meses necessita de 11 a 13 horas de sono por dia; uma criança de 1 ano necessita de 10 a 12 horas; aos 3 anos, de 10 a 11 horas e, aos 5, de 9 a 10 horas de sono por dia. Habitualmente, a partir de 4 anos de idade, a maior parte das crianças não necessita mais de dormir durante o dia (manhã e/ou tarde), embora crianças com desenvolvimento completamente típico possam precisar de cochilos diurnos até 5 ou 6 anos de idade.

Por fim, eu gostaria de dar algumas dicas para melhorar a qualidade de sono, que deveriam ser seguidas para todas as crianças:

  1. Evitar brincadeiras que estimulem demasiadamente o cérebro das crianças pelo menos nas duas horas que antecedem o sono, como exposição à televisão, músicas estimulantes e brincadeiras fisicamente intensas. Lembrem-se de que “cansar fisicamente, de forma exagerada, a criança” não melhorará sua qualidade de sono; pelo contrário, a exaustão física por provocar despertares noturnos mais frequentes.
  2. Estabeleça uma rotina que anteceda o sono. Por exemplo: tomar banho, colocar o pijama, tomar um copo de leite, escovar os dentes e se deitar para dormir. Isso gera no cérebro da criança estímulos discriminativos que ajudam, gradativamente, a perceber que o momento de dormir está chegando.
  3. Estabeleça um horário para dar início à rotina do sono e um horário para que a criança realmente esteja na cama para dormir. Tente manter esse horário de forma rotineira todos os dias. Isso ajuda muito a evitar a insônia e a ansiedade no momento de ir para a cama.
  4. Não utilize métodos para induzir ao sono, como embalar a criança no colo, dar tapinhas nas costas, massagear o corpo, pois isso pode gerar um mecanismo cerebral que associa esses atos motores ao ato de dormir, de modo que a criança sempre necessitará destes estímulos para dar início ao sono. A forma mais correta e eficaz de agir é colocar a criança já com sono, mas ainda acordada, no berço ou na cama. Quando utilizamos técnicas para embalar o sono da criança e colocamos ela no berço já dormindo, todas as vezes que essa criança despertar, à noite, você terá que realizar todo o ritual novamente, o que é extremamente cansativo para os pais.
  5. Lembrem-se de que muitas pessoas sentem-se desconfortáveis para dormir na completa escuridão. Evidentemente, o quarto deve estar com as luzes apagadas (e com a televisão desligada!), pois a claridade impede a produção natural da melatonina. Mas, se seu filho preferir, permita uma iluminação de baixa intensidade no quarto.
  6. A temperatura do ambiente deve ser sempre confortável, pois locais excessivamente quentes ou frios podem dificultar os fenômenos cerebrais que desencadeiam e mantêm o sono noturno.
  7. A utilização de medicamentos indutores de sono SEMPRE será a nossa última opção. Medicamentos sedativos, obviamente, fazem com que a criança durma uma grande parte da noite, mas podem (e geralmente deixam) um certo efeito residual no dia seguinte. E, claro, uma criança com qualquer nível de sedação ou sonolência diurna tenderá a ter um desenvolvimento neurológico e pedagógico mais lento que as demais crianças.

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