O autismo está classificado entre os transtornos do desenvolvimento neurológico, sendo mais antigamente enquadrado entre as encefalopatias crônicas não evolutivas da infância, assim como a paralisia cerebral e a deficiência intelectual. Mas o que isso significa exatamente?
Significa que o transtorno do espectro autista (TEA) é uma condição que pode ser tratada, mas que, teoricamente, faz parte do funcionamento intrínseco do cérebro dessas pessoas. Dessa forma, os sinais e sintomas comportamentais próprios do TEA podem ser minimizados, mas não totalmente abolidos.
Eu fiz esta breve introdução a respeito do TEA para deixar claro que a grande maioria das famílias dessas crianças conviverão com sintomas comportamentais de seus filhos por toda a vida. Desse modo, é totalmente natural pensarmos que isso terá um impacto sobre a dinâmica e as rotinas familiares, desde aspectos financeiros até a qualidade de vida emocional e social.
Há muitas formas de conceituarmos “família”, quer com bases teóricas epistemológicas quer através do contexto sócio-histórico. O fato é que, para um grupamento de pessoas ser considerado uma “família”, é preciso que essas pessoas interajam entre si de forma íntima, havendo um movimento contínuo de trocas entre cada um destes indivíduos. Isso constituiria um “organismo vivo e dinâmico” que poderíamos entender como uma “família”. Assim, devemos frisar que a definição social de “família” não passa pelas leis da genética, e sim pelas relações interpessoais estabelecidas durante determinado período de tempo.
Como nós sabemos que o comportamento humano é aprendido e aperfeiçoado através de mecanismos neurológicos complexos de imitação, cópia e reforço, é fundamental que as pessoas que constituem o núcleo familiar da criança apresentem comportamentos socialmente adequados, pois esses serão utilizados como “modelo” para seu desenvolvimento.
Após a chegada de uma criança com deficiência ou qualquer necessidade especial que seja, há, quase que de forma imediata, uma mudança nos papeis anteriormente exercidos pelos pais, sendo muito comum que a mãe, que até aquele momento dedicava seu tempo ao trabalho doméstico ou extradomiciliar, agora passe a ocupar o lugar de “cuidadora” em período integral do filho. Esse fenômeno terá, invariavelmente, repercussões sobre a dinâmica familiar, o casamento e sobre os relacionamentos extrafamiliares.
Vejam que, no parágrafo anterior, quando eu me refiro às “mães”, há um forte viés cultural nesse fato, uma vez que exatamente o mesmo papel de “cuidador” imediato da criança poderia ser exercido pela figura do pai.
Conforme o nível de dependência da criança no TEA, isso levará a um maior ou menor impacto sobre os vínculos que esses pais terão com o “mundo externo”. Mas esses vínculos serão afetados de alguma forma. Outro aspecto importante é que famílias diferentes têm reações diferentes à chegada de uma criança autista, de modo que a saúde emocional de seus membros pode ser afetada de formas e intensidades distintas.
Em minha prática clínica diária com crianças no TEA e suas famílias, tenho absolutamente certeza de que o sentimento mais comum dos pais é o medo e a incerteza com o futuro da criança, embora, não raramente, sujam sentimentos menos nobres, como a vergonha e o constrangimento. É comum, também, que muitos pais se sintam culpados após o diagnóstico do autismo, sentimento este que está ancorado em crenças totalmente fantasiosas de décadas passadas.
Eu costumo dizer uma frase que acho que cabe bem nesse momento: “as mulheres se tornam mães quando descobrem que estão grávidas, enquanto os homens se tornam pais somente quando o bebê nasce”. Em termos gerais, isso significa que, num casal, a mulher se torna mãe muito tempo antes do que o homem se torna pai e isso pode explicar algumas diferenças de sentimentos que mães e pais têm após o nascimento da criança.
Assim como ocorre na natureza, homens e mulheres costumam ter papeis distintos na dinâmica familiar. A figura abstrata do que chamamos de “instinto materno” é observada não somente nos seres humanos, mas em praticamente todos os primatas não humanos e até mesmo em mamíferos inferiores. Assim, é quase instintivo que uma mulher, percebendo que seu filho apresenta uma necessidade especial, torne-se uma “cuidadora extrema”, passando a dedicar a maior parte de seu tempo à criança. Infelizmente, muitas vezes, isto resulta em cansaço e exaustão física e emocional.
Embora haja estudos publicados nos Estados Unidos demonstrando que a porcentagem de divórcio em casais com filhos no TEA seja a mesma que em casais com filhos típicos, eu não tenho certeza de que estes dados possam ser aplicados à nossa população e explico o porquê: em países desenvolvidos (como os Estados Unidos), o acesso às intervenções terapêuticas adequadas, às escolas de boa qualidade, ao diagnóstico precoce, assim como o nível de apoio social, é consistentemente maior quando comparado aos países em desenvolvimento (como o Brasil). Desse modo, é muito fácil compreendermos que a repercussão que o diagnóstico do autismo tem sobre os pais dessas crianças é absolutamente diferente.
Eu quero terminar esse breve texto dizendo que tenho certeza de que somente quem passa pela experiência de conviver no DIA A DIA com uma criança no TEA é capaz de entender o peso de palavras como “inclusão”, “exclusão”, “comprometimento” e “dedicação”. Eu tenho um ENORME respeito pelas pessoas que, durante a tempestade, não foram embora…
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