Hoje eu falarei de um assunto necessário ao se falar de autismo ou, mais especificamente, no caso do diagnóstico já em desuso de Síndrome de Asperger.
A característica em questão é a forma como os autistas gostam de certas coisas, ao ponto de tal gosto, em algumas horas, atrapalhar, e em outras, ajudar a pessoa a se socializar. Muitos especialistas chamam esta forma de “hiperfoco”, e os temas que o hiperfoco ajuda a sustentar são chamados de “interesses obsessivos de alto nível”, ou ainda por “interesses especiais”. Há, no entanto, uma forte confusão a respeito do uso destes termos (que, aliás, designam duas coisas diferentes) – uso este que será explicado abaixo.
A medicina define hiperfoco como um tipo de concentração mental ou visualização que foca a consciência em uma tarefa, tópico ou assunto, podendo estar relacionado, por exemplo, com produtos tão difusos quanto séries televisivas, músicas, livros e filmes. O excesso de hiperfoco pode causar o desvio da concentração em relação a tarefas importantes (exemplos: higiene pessoal, alimentação, compromissos com estudos, trabalho, família etc.); mas também pode te levar a tomar atitudes que podem ter consequências a médio/ longo prazo (como começar um projeto baseado no alvo do hiperfoco). Mas não só autistas “de alto funcionamento” e/ou Aspergers podem ter tal característica. Ela também seria relacionada ao Transtorno de Déficit de Atenção com ou sem Hiperatividade (TDAH).
O hiperfoco, dependendo do caso, pode durar horas, dias, até mesmo meses, anos, ou mesmo a vida toda…
Relacionam-se ao hiperfoco as insistências relacionadas a certos interesses ou preferências, que até agora nunca foram explicadas com clareza por especialistas de vários campos, visto que os critérios diagnósticos de autismo “evoluem” com o passar dos anos.
Estes interesses especiais são os temas que o hiperfoco sustenta. Eles podem vir a se constituir como profissões ou mesmo como gostos e traços de personalidade no futuro. Deve-se ter em conta que, do século XX em diante, as pessoas começaram a se reunir cada vez mais a partir de interesses e gostos (em especial os que são relacionados a produtos culturais variados). Um fenômeno que me deixa intrigado e ao mesmo tempo fascinado.
Algumas pessoas defendem que o hiperfoco e os interesses podem ser considerados uma expressão natural da personalidade e também uma habilidade mental, algo que pode ajudar a definir a pessoa (embora ache que as pessoas não possam ser definidas por seus interesses). Mas creio que se o hiperfoco for treinado, ele pode ser bom para a socialização e mesmo para a inclusão social.
Vou tentar explicar um pouco o hiperfoco e os interesses em um só parágrafo:
“Temos aqui um garoto que gosta da série de livros As Crônicas de Gelo e Fogo, ou, se for o caso, da adaptação televisiva desta série, o seriado Game of Thrones. Tem vezes em que ele se pega falando várias vezes sobre, por exemplo, Jon Snow e a Patrulha da Noite, ou sobre Daenerys Targaryen e seus dragões, ou sobre a família Lannister e sua rixa com os Stark. Ele pode ficar falando por tanto, mas tanto tempo, que talvez isso possa atrapalhá-lo (desviando-o de tarefas importantes), ou, dependendo do caso, ajudá-lo a criar laços com outras pessoas e até mesmo estabelecer uma opção de trabalho, se for o caso.”
E, agora, vou explicar usando o meu caso:
“Eu tenho um interesse fortíssimo na fonética e fonologia de línguas existentes, e também na de línguas que eu mesmo crio. Se bem que eu às vezes não consigo me entusiasmar e vou criar outras coisas. Além disso, gosto muito de procurar assuntos relacionados às franquias de jogos nas quais eu sou muito interessado, e quando era criança já me imaginava criando desenhos de níveis alternativos de jogos eletrônicos que eu jogava… apesar de que eu nunca consegui criar estes níveis no computador.”
“E sempre tive um interesse, ainda que variado (fraco em alguns aspectos e forte em outros) em política e sociedade.”
Bem, meu hiperfoco sustentou (e ainda sustenta) estes assuntos durante anos. Não devo dizer que eles atrapalharam mais que me ajudaram, pelo contrário, até me ajudaram – no caso de determinados interesses, a estabelecer laços com meus amigos (embora eles não entendessem nada de fonética e fonologia e só entendessem de política, no geral, em dias de eleições).
O problema era que nos meus primeiros anos, eu não me policiava a respeito disso, saber quando parar. Conforme o tempo foi passando, porém, aprendi (claro que com a ajuda de minha família e de meus amigos) a me enturmar falando especificamente de outras coisas, ao passo que descobria outros gostos/interesses. E hoje em dia, quando estou excessivo e insisto em alguma coisa, sei minha hora de parar.
Portanto, a perseverança do jovem em falar de Crônicas de Gelo e Fogo/Game of Thrones, e a minha perseverança em assuntos relacionados à fonética, aos jogos e também à política é especificamente o efeito do hiperfoco; já a série de livros de fantasia e sua adaptação televisiva e coisas relacionadas, como personagens ou objetos, e os campos da fonética e da política e também os jogos seriam os interesses especiais.
Para concluir este artigo, um conselho: não se deixe definir tanto por seus gostos e sim pelo que sente. Pode ser pelo que sente pelos seus interesses, pode ser por outras coisas ou mesmo pessoas. Seus sentimentos também contam, especialmente se forem bons sentimentos. Seja você mesmo e seja algo além de seus gostos. O amor, a amizade, a ternura, a união, entre outros, também contam.
O próximo artigo é sobre os “stims”, ou “comportamentos/movimentos de autoestimulação”. Até mais tarde!
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