Jennifer se olhou no espelho antes de dormir. A imagem refletida não condizia com a de uma mulher de apenas 45 anos de idade. O semblante cansado lhe conferia alguns anos a mais. O autismo de seu filho caçula balançava suas estruturas e exigia dela uma dedicação quase que integral.
Esforçava-se diariamente para esquecer e não ser consumida pela condição de seu filho. Contudo, as manchas roxas em seus braços lembravam-na a todo momento que seu menino era acometido por um grau de autismo muito severo, com grande comprometimento. Às vezes, era necessário contê-lo pois ele se agredia; as marcas em seus braços eram resultados das vezes em que ela havia tentado acalmá-lo.
Aos 14 anos, frequentava uma escola especial e inspirava uma série de cuidados, sendo necessário ajudá-lo com sua higiene pessoal, a vestir-se e alimentar-se. Muito embora ela e seu marido tentassem sair com ele, era muito difícil pois ele tinha forte apego à rotina e se recusava a sair.
Vê-lo isolado e sozinho fazia seu coração sangrar e, por isso, jamais seria capaz de entender, tampouco aceitar, porque as pessoas insistiam em chamá-lo de “anjo azul”. Anjos tinham asas e eram livres para voar, viver novas experiências, libertos de qualquer amarra; e seu filho vivia aprisionado pelo autismo.
Tinha vontade de gritar quando as pessoas lhe diziam que o autismo era uma bênção e que ela havia sido abençoada, pois era uma mulher forte e capaz. O que as pessoas sabiam sobre ela e sobre sua vida?
Ninguém sabia de sua luta diária e muito menos da dor que carregava dentro de si. Amava seu filho com todas as suas forças. E enquanto vida tivesse, usaria estas mesmas forças para odiar o autismo.
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Enquanto olhava-se no espelho, Kate pensava em tudo que havia acontecido naquele dia maravilhoso. Sentia-se como se estivesse presenciando um verdadeiro milagre!
Ver seu filho participando da apresentação do trabalho de História, juntamente com seus colegas do oitavo ano, encheu seu peito de alegria e esperança. Esperança de que todos os dias fossem iguais a este.
Pouco importava que ele tivesse demorado mais tempo do que os colegas para lembrar suas falas; tampouco considerava um problema o fato de ele ter feito sua explanação sem olhar para o público.
O que realmente importava era o fato de que ele havia conseguido. Do jeito dele. No tempo dele.
Ele era diferente e ela sabia que assim seria para sempre. Jamais objetivou “torná-lo” igual aos outros, mas sim lutava para que ele pudesse adquirir o máximo de autonomia possível e, PRINCIPALMENTE, para que ele fosse FELIZ! Entretanto, Kate sabia que nem todos os dias eram iguais àquele.
A grande verdade é que os dias difíceis existiam e representavam 40% de sua jornada.
E era justamente nestes momentos que o autismo mostrava sua face mais dura e cruel.
As”águas” azuis e, aparentemente, calmas do autismo davam lugar a um mar revolto e sombrio, uma verdadeira tsunami de dor que “engolia” a tudo e a todos, a seu redor.
E então ela percebia que a alegria que inundava seu peito nos momentos em que seu filho conquistava vitórias, cedia espaço à tristeza sem fim quando suas tentativas e esforços eram infrutíferas.
O mesmo autismo que às vezes parecia lhe oferecer milagres, alegrias e esperança, também lhe imputava MUITA dor, sofrimento, angústia, desespero, medo e tristeza.
Sem dúvida, esta era uma jornada repleta de extremos, sentimentos antagônicos e surpresas, ora positivas ora negativas.
Mas, afinal, a vida era assim para todos – autistas ou não.
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Enquanto retirava a maquiagem, vários pensamentos passavam pela cabeça de Tabatha.
E o responsável pela maior parte destes pensamentos era seu filho caçula que mostrava, a cada dia, que sua condição não era um fator limitador em sua vida.
Aluno brilhante, sempre se destacava pelo raciocínio preciso e perfeito, sendo capaz de realizar cálculos inimagináveis.
Ele tinha o que os especialistas chamavam de “autismo leve” ou “autismo de alto funcionamento” (que no passado era chamado de síndrome de Asperger). Aos 13 anos, já havia decidido que seria engenheiro, carreira com a qual sonhava.
Era puro e extremamente ingênuo, incapaz de perceber a maldade que o ser humano, por vezes, apresenta. Justamente por ser assim, um “anjo azul”, era facilmente enganado por pessoas de má fé e isso causava extrema preocupação em Tabatha.
O processo terapêutico procurava lhe “ensinar” como lidar com estas situações. Algumas vezes ele conseguia; em outras tantas, fracassava.
Contudo, era cruel ter que ensinar seu filho a ter cuidado com as pessoas e lhe mostrar a maldade da vida; Tabatha amava seu filho com todas as forças de seu ser e tinha certeza de que havia sido escolhida por Deus para conduzir e proteger seu menino nesta terra.
Sentia-se verdadeiramente abençoada por esta missão.
As estórias acima, bem como os personagens, são fictícias.
Entretanto, é bem provável que você conheça uma ou até mesmo muitas famílias com histórias de vida semelhantes ao que aqui foi narrado.
Poderíamos, perfeitamente, modificar todas as condições nestas estórias e, ainda assim, as seriam perfeitamente críveis.
Contudo, se após ler estas narrativas você considerou que a postura de uma (ou mais) personagem está equivocada, é recomendável que reveja, com urgência, seus conceitos e crenças.
Cada uma das personagens apresentou reações diferentes e, por vezes, antagônicas e conflitantes aos estímulos recebidos. Cada uma delas vivencia uma estória própria com seu filho, pois o autismo afetou cada um deles com graus de comprometimento diversos.
Todo indivíduo é único e as pessoas com autismo não fogem a esta regra.
Possuem características próprias, especificidades, habilidades e dificuldades que irão influenciar, decisivamente, em sua evolução e desenvolvimento.
Infelizmente, neste “universo azul” que o autismo nos traz, tem sido cada vez mais frequente a troca de julgamentos e acusações entre mães de autistas.
Como se já não fosse ruim o bastante a enorme quantidade de “dedos apontados” em nossa direção, provenientes daqueles que não vivem a situação, ainda encontramos mães de autistas julgando outras mães de autistas.
Sua amiga considera o próprio filho um “anjo azul” e você discorda totalmente disso?
A outra acredita que foi escolhida e que ter um filho com autismo é uma benção, ao passo que sua opinião é radicalmente oposta?
Uma terceira odeia o autismo com todas as forças e você acredita que ele é parte de seu filho e por este motivo tem orgulho de sua condição e da forma como ele enfrenta as adversidades? Perfeito!
Todos nós temos direito a ter opiniões diferentes. Discordar umas das outras, longe de ser um crime, é salutar, pois o pilar de todo processo democrático baseia-se no debate de opiniões e troca de conhecimentos.
Que fique claro que a crítica construtiva é muito diferente da crítica leviana, onde o único objetivo parece ser disseminar intrigas e discórdia.
Entretanto, divergir é MUITO diferente de julgar e criticar. Todas vivemos realidades diferentes, seja por quais motivos forem, e apenas cada uma de nós sabe o que enfrenta todos os dias, assim como as dificuldades e conquistas.
Tenhamos empatia umas pelas outras. Julguemos menos e amemos muito mais.
Ninguém, absolutamente ninguém, é dono da verdade!
Denise Aragão
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